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TRATAMENTO DA DEPENDÊNCIA QUÍMICA NO ÂMBITO DA EXECUÇÃO PENAL

Atualizado: 2 de nov. de 2018

A conseqüência da titulação criminal que a justiça, legitimada pela sociedade, concede as drogas, se personifica no crescente número de pessoas presas pelo cometimento, em tese, do delito tráfico. Números do INFOPEN de Junho/2016 nos mostram que cerca de 62% das mulheres presas e 26% dos homens presos estão detidas pelo tipo penal de tráfico. Ocorre que antes de serem declaradas traficantes pelo Juiz, grande parte dessas pessoas fazem o uso problemático de substâncias psicoativas com alto nível de dependência, ou possuem parentes com essa enfermidade, como é grande parte dos casos de mulheres surpreendidas na revista pessoal tentando entrar com substâncias proibidas no cárcere.

Vale destacar, que a dependência em substâncias ilícitas acontece da mesma forma com as substâncias lícitas, mudando apenas o grau de intensidade, conforme o médico psiquiatra Ronaldo Laranjeira:

(...) existe, no cérebro, uma área responsável pelo prazer (...). Desse modo, evolutivamente, criamos essa área de recompensa e é nela que a ação química de diversas drogas interfere. Apesar de cada uma possuir mecanismo de ação e efeitos diferentes, a proposta final é a mesma, não importa se tenha vindo do cigarro, álcool, maconha, cocaína ou heroína.” (2018)

Ressalta-se, o que toleramos ou deixamos de tolerar, depende muito do contexto histórico revestido de critérios morais. Um exemplo foi a Lei Seca dos EUA na década de 20. Nos ensina o mestre em História Rainer Sousa, que foi sancionado a “proibição de bebidas com mais de 0,5% de teor álcool, pois seria intoxicante e, portanto, teria sua fabricação, venda, distribuição e consumo terminantemente proibidas” (2018). Contudo, a proibição só levou ao fortalecendo do mercado clandestino, entrando para a história como a única lei que acabou sendo revogada nos EUA.

Acerca da dependência química, a Organização Mundial da Saúde (OMS), já catalogou e afirmou que trata-se doença comportamental, cognitiva e fisiológica que se desenvolve após o uso reiterado de substância psicoativas. Sendo assim, a consequência do reconhecimento da dependência química como uma patologia, é a necessidade de tratamento médico especializado. Tanto é que atualmente no Brasil é pacífico o entendimento que o dependente em substância psicoativa (independente se lícitas ou ilícitas), se segurado pelo INSS, e cumprido os requisitos, têm o direito ao auxílio doença.

Diante da dependência como uma enfermidade, ou seja, trata-se de algo que prescinde a mera vontade do indivíduo, e que no caso, o sujeito passa a viver em prol de adquirir cada vez mais a substância viciante, é possível vislumbrar alguns dos caminhos que um dependente químico pode traçar até chegar a sua sentença condenatória, porquanto a fissura retira do enfermo a liberdade de autodeterminação, que passa a viver em razão de conseguir mais substância psicoativa para aliviar a fissura ou craving, que segundo a OMS trata-se do desejo intenso de repetir a experiência dos efeitos de uma dada substância.

E de tão rotineiro que são os casos, é possível até mesmo traçar alguns desses caminhos em que o dependente percorre até chegar ao cárcere: um usuário tipificado como traficante, um dependente que furta ou rouba para sustentar o vício, ou até mesmo aquele que trabalha para o tráfico, em troca de obter a substâncias psicoativas, entre outras mais diversas situações. Ao encontro, diz o Procurador de Justiça do PR, Dr. Rodrigo Régnier Chemim Guimarães, que após anos de trabalho, como Procurador de Justiça criou a “Fórmula matemática do tráfico de drogas” ao concluir que na maioria dos casos de condenação por tráfico acontece da seguinte forma:

(...) a Polícia Militar relata ter recebido uma notícia anônima de que haveria um traficante na região tal, com determinadas características físicas; em verificação desta notícia anônima, a Polícia Militar aborda um sujeito na rua, procede à revista pessoal e, bingo (!), encontra com ele pequena quantidade de droga num dos bolsos da calça e, no outro, algumas notas de dinheiro em pequenos valores. Resultado: traficante! Não interessa o que o sujeito abordado na rua estava fazendo no momento, tampouco suas alegações no sentido de que a droga encontrada seria para seu consumo pessoal.(2015)

Uma vez apreendido em posse de substâncias psicoativas, é feito o primeiro julgamento subjetivo pela polícia, se no caso trata-se de uso ou tráfico. Contudo, em caso de tipificação errônea no Inquérito Policial, as chances de conseguir reverter esse cenário no processo judicial diminuem drasticamente, pois é o pessoal de campo quem vai colher as provas, e em caso de mais passagens por uso, será considerado mais um “grande indício” de que, dessa vez, trata-se de tráfico. Sequer é solicitado um laudo para averiguar se o reiterado flagrante com drogas pode ser caso de dependência. Bem como as inúmeras faltas graves, oriundos da apreensão de drogas dentro do cárcere, jamais despertam a singela dúvida se o sujeito possui algum problema de saúde relacionado ao uso problemático de substâncias psicoativas ou não.

Uma vez condenado, o dependente vê-se em um novo começo: a fase da Execução da pena, momento que o Estado passa a “fazer valer o comando contido na sentença condenatória penal” (NUCCI, 2008, p.1002). Agora, cessa-se a aspiração punitiva do Estado que dá lugar a pretensão punitiva.

Vale destacar que o comando contido na sentença, assim como no processo criminal, deve respeitar a individualização da pena prevista expressamente no art. 5°, inc. XLVI da Carta Magna que prevê:

XLVI - a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:

a) privação ou restrição da liberdade;

b) perda de bens;

c) multa;

d) prestação social alternativa;

e) suspensão ou interdição de direitos;

(BRASIL, 1988, s.p)

Ou seja, mesmo que os motivos que levaram ao cárcere sejam os mesmos, ou diversos, a execução da pena sempre deverá ser aplicada de maneira individualizada, respeitando, inclusive suas enfermidades sendo elas físicas ou psicológicas.

A legislação que regulamenta esse período de cumprimento da pena é a Lei n° 7.210/1984, chamada de Lei de Execuções Penais. Denota-se que há mais de trinta anos a LEP já trazia em seu texto normativo importantes garantias, princípios e direitos, conforme se verifica na Seção II, art. 41 da LEP que trata dos Direitos:

Art. 41 - Constituem direitos do preso:

I - alimentação suficiente e vestuário;

II - atribuição de trabalho e sua remuneração;

III - Previdência Social;

IV - constituição de pecúlio;

V - proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a recreação;

VI - exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas e desportivas anteriores, desde que compatíveis com a execução da pena;

VII - assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa;

VIII - proteção contra qualquer forma de sensacionalismo;

IX - entrevista pessoal e reservada com o advogado;

X - visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados;

XI - chamamento nominal;

XII - igualdade de tratamento salvo quanto às exigências da individualização da pena;

XIII - audiência especial com o diretor do estabelecimento;

XIV - representação e petição a qualquer autoridade, em defesa de direito;

XV - contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes.

XVI – atestado de pena a cumprir, emitido anualmente, sob pena da responsabilidade da autoridade judiciária competente. (BRASIL, 1984, s.p)

Destaca-se ainda que o direito a tratamento e assistência médica, tamanha sua importância, é expresso na LEP como um direito e um dever do Estado, senão vejamos:

Art. 10. A assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade.

Parágrafo único. A assistência estende-se ao egresso.

Art. 11. A assistência será:

(…)

II - à saúde;

Art. 14. A assistência à saúde do preso e do internado de caráter preventivo e curativo, compreenderá atendimento médico, farmacêutico e odontológico.

§ 2º Quando o estabelecimento penal não estiver aparelhado para prover a assistência médica necessária, esta será prestada em outro local, mediante autorização da direção do estabelecimento. (BRASIL, 1984, s.p)

Ou seja, não restam dúvidas que é devido o tratamento médico, seja ele preventivo ou curativo, pois além de ser dever do Estado, é também um direito da pessoa presa. No entanto, a dependência química ainda é vista e tratada com preceitos morais, e o seu tratamento negligenciado pelos responsáveis.

Segundo inúmeros estudos realizados, inclusive, pela maior entidade gestora da Comunidades Terapêuticas do Brasil, a Federação Brasileira de Comunidades terapêuticas - FEBRACT, bem como o livro de Integração de Competências no Desempenho da Atividade Judiciária com Usuários e Dependentes de Drogas fornecido pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (2015), não existe um remédio capaz de “combater” a dependência, e sim um arcabouço de terapias, medicamentos que aliviam os sintomas da dependência, tais como: febre, enjoo, ansiedade, taquicardia, craving, ou seja, o que existe são tratamentos diversos que juntos, podem ou não garantir o sucesso e o controle da dependência química.

Outra constante no tratamento, assim como na maioria das doenças psicológicas mentais, são as chamadas “recaídas”, que são totalmente reconhecidas na medicina. Porém grande parte das pessoas associa as recaídas como se fosse falta de força de vontade do indivíduo, o que torna o processo ainda mais árduo, pois para o tratamento de doenças psicológicas é imprescindível além da intervenção especializada o apoio da sociedade em geral, pois o toxicodependente perde junto com o seu poder de autodeterminação a sua dignidade, o que deve ser reconstruído pouco a pouco com o tratamento da doença, além da reconstrução ou construção de novos laços afetivos.

A partir da década de 1990, várias iniciativas foram tomadas a fim de garantir ao paciente tratamento mais digno e condizente a realidade de cada indivíduo. Atualmente um dos documentos que regulamenta o tratamento da toxicomania em comunidades terapêuticas é a RDC da Anvisa 101/2001 e no SUS a Portaria GM/MS n.º 816 de 2002. Ressalta-se que existe a previsão expressa de que deve haver prévia avaliação diagnóstica, clínica e psiquiátrica, cujos dados deverão constar na Ficha de Admissão.

Sendo assim, a avaliação inicial, a persistência e a inovação para encontrar os tratamentos efetivos para aquele indivíduo em específico, tornam-se o triunfo para o melhor acompanhamento da doença. E mesmo assim, o tratamento não é sinônimo de “cura eterna”, mas sim a consciência do indivíduo frente a sua enfermidade, a autonomia do sujeito de se controlar e se auto conhecer.

Atualmente, apesar de a legislação prever tratamento médico, e do grande número de faltas graves pelo uso ou porte de substâncias psicoativas dentro dos presídios, no Estado do Paraná não é conhecido nenhum programa ou protocolo para tratamento desses indivíduos que estão cumprindo pena.

O que, de forma bem tímida, vêm sendo implementado, são alguns projetos que visam à prevenção e a intermediação do tratamento da dependência química, na fase criminal, tal como o Projeto Semear do Ministério Público do Paraná, que consiste:

O Projeto SEMEAR é a estratégia do Ministério Público do Paraná para o enfrentamento ao álcool, crack e outras drogas. Por meio de uma atuação integrada de membros e servidores da instituição, o projeto busca construir, de forma coletiva, diretrizes que resultem em políticas públicas de prevenção e de atendimento aos usuários de substâncias psicoativas.

Existe também o Projeto do Tribunal de Justiça do Paraná que atua em algumas Varas Criminais, chamado de Oficina de Prevenção ao Uso de Drogas - OPUD. Este se resume basicamente, ao atendimento, e ao encaminhamento a comunidades terapêuticas se for o caso, dos custodiados que obtém a Liberdade Provisória, e que no momento da audiência de Custódia afirmam ao juiz que têm o interesse de participar do programa.

É possível perceber que tais projetos tratam-se de uma iniciativa com base na Justiça restaurativa. No tocante ao dependente químico, tais técnicas podem se revelar indubitavelmente favoráveis, contanto que se opte pelo tratamento adequado que busquem restaurar a dignidade do indivíduo, devolvendo a ele a percepção de sua doença e também a possibilidade de tratamento, para que o indivíduo passe a ser capaz de reparação dos danos causados.

Contudo, um dos princípios basilares do tratamento do uso abusivo de substâncias psicoativas, é a voluntariedade conforme dispõe a Lei n° 10.216 de 2001 que trata sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais, e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Dessa forma, salvo casos extremamente comprovados por médicos, deve ser uma arbitrariedade do indivíduo que faz o uso problemático da substância psicoativa, e não uma condição para a liberdade provisória.

No entanto, a prática corriqueira nos fóruns anda causando grande estranheza, pois está havendo grande número de decisões, e propostas para Transação Penal do MP, que condicionam a liberdade provisória do sujeito ao tratamento da dependência. Sendo que antes de se julgar se a pessoa faz o uso problemático da substância, conforme já dito é imprescindível a avaliação por profissionais especialistas na área, para determinar o grau de dependência, bem como o tratamento. Não cabendo de forma alguma aos profissionais do judiciário emitir diagnóstico e prognóstico da doença.

Vale destacar que a oportunização do tratamento para o indivíduo que faz o uso problemático da substância psicoativa é imprescindível, pois conforme já exaustivamente mencionado, trata-se de uma doença. Contudo, o Conselho Federal de Psicologia nos alerta que “é preciso, antes de tudo, atentar para as múltiplas formas de uso de diferentes substâncias e para o fato de que nem todas as pessoas que fazem uso de drogas têm problemas crônicos com seu uso” (2018). Ou seja, é preciso combater a falsa percepção de que todo usuário tem problemas com a substância, como é possível observar na ata da Audiência do processo nº 13337-64.2017.8.16.0026 que tramitou Juizado Especial Criminal de Campo Largo, que condicionou a transação penal, por no mínimo três meses de tratamento junto ao CAPS, sem que o sujeito tenha sido avaliado por especialistas, conforme se verifica:

Trata-se de delito previsto no Art. 28 da Lei 11.343/2006. O noticiado preenche os requisitos subjetivos e objetivos exigidos pelo Art. 76 da Lei 9.099/95, razão pela qual propõe o Ministério Público a transação penal consistente no comparecimento e tratamento do mesmo junto ao CAPS desta cidade, na data de hoje, pelo prazo não inferior a 3 (três) meses; ou pelo prazo indicado pelo médico avaliador nas hipóteses de tratamento ambulatorial. Em sendo caso de tratamento por internação, comunique-se a 4ª PRomotoria de Justiça. (grifo nosso). (2018)

Reitera-se, cabe somente a medicina determinar tratamento médico e qual o grau de dependência de cada pessoa, assim como existem pessoas que fazem o uso de álcool e não são alcoólatras, existem pessoas que fazem o uso de substâncias psicoativas e não são viciadas.

Ou seja, cabe aos juristas aplicar a lei, encaminhando o usuário para programas ou medidas educativas, e nesses programas, contando com equipe especializada, se houver a necessidade de tratamento para dependência química, viabilizar essa necessidade.

Entretanto, para os que já se encontram presos, não resta mais nada, a não ser as famigeradas faltas graves, pois caso sejam apreendidos em posse das substâncias psicoativas respondem a processo administrativo. É como se após ter passado a fase do processo criminal, o dependente tenha se curado da dependência e agora cumpre sua pena longe dessa doença que acomete somente aos livres.

Todavia, outra questão que paira quando falamos de encarcerados(as) que estão sob guarda e responsabilidade do Estado, é saber como a substância ilícita chegou até os confinados?

Vale enfatizar, que o argumento de falta de verba, para investimentos em aparatos de controle de entrada de objetos, não deve mais ser relevado. Inclusive, aceitar revista pessoal, enquanto existem medidas menos vexatórias como o scanner, é um retrocesso absoluto, pois além da revista pessoal ser extremamente vexatória, conseguindo estender a pena da pessoa presa para seus visitantes, trata-se de método antiquado e pouco confiável.

Todavia, caso a substância proibida seja apreendida dentro do cárcere, sempre algum preso terá que ser responsabilizado. Sem que ninguém questione como foi possível que a substância entrou no local. Em algum momento o trâmite foi facilitado, seja pela falta de equipamento de scanner, ou até mesmo pela corrupção de algum funcionário. Certo é, que houve falha do Estado, o que possibilitou que as drogas entrassem no presídio.

No caso em tela basta saber quem vai “assumir” as drogas não importando como elas entraram no presídio. E a pessoa presa suporta sozinho todas as consequências desse fato, com a imputação da falta grave e um novo processo que vai apurar novo delito de tráfico.

Destaca-se que é imprescindível uma análise mais apurada, nos casos em que se encontram substâncias proibidas no cárcere, pois o Estado deve arcar com suas responsabilidades, e reconhecer que ao ser omisso ou negligente, deixou substâncias infiltrarem no estabelecimento penal.

Segundo Gregori Moura (2006 p.41), a co-culpabilidade é intrínseca na Constituição Federal, que corresponde na responsabilidade do Estado no cometimento de determinados delitos, cometidos por aqueles que o Estado deixou de garantir as condições mínimas sociais e econômicas. Sendo assim, aduz o autor que ensejaria em menor reprovação social.

Ainda, Zaffaroni afirma que diante de uma sociedade democrática de Direito, que tem como norte que todos são iguais perante a lei, é possível vislumbrar a Teoria (ou princípio) da Co-culpabilidade e afirma:

Todo sujeito age numa circunstância determinada e com um âmbito de autodeterminação também determinado. Em sua própria personalidade há uma contribuição para esse âmbito de autodeterminação, posto que a sociedade – por melhor organizada que seja – nunca tem a possibilidade de brindar a todos os homens com as mesmas oportunidades. Em consequência, há sujeitos que têm um menor âmbito de autodeterminação, condicionado desta maneira por causas sociais. Não será possível atribuir estas causas sociais ao sujeito e sobrecarregá-lo com elas no momento da reprovação de culpabilidade. Costuma-se dizer que há, aqui, uma ‘co-culpabilidde’, com a qual a própria sociedade deve arcar. (ZAFFARONI 2008, p. 525)

No caso, o sujeito preso acometido por doença mental da dependência química, ao ser surpreendido com a droga, deveria ter a sua reprovação dosada juntamente com a responsabilização do Estado, devido a co-culpabilidade. Tamanha relevância desse princípio se deve, porquanto o dependente químico, sem tratamento médico adequado, dificilmente conseguirá repelir o desejo de utilizar a substância, e inclusive passa a ser alvo para servir de “mula”, trazendo e levando drogas em troca de mais substância psicoativa, ou dinheiro para comprar mais drogas.

A conseqüência de ser surpreendido com substância psicoativa dentro do estabelecimento penal é a falta grave prevista no art. 52 da Lei nº 7.210/1984, que dispõe: “A prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave [...]” (BRASIL, s.p). Para o judiciário basta a constatação de um fato para a aplicação imediata da falta grave, sendo o novo crime, nesse caso, presumido. Ou seja, sequer vai ser analisado se o sujeito do fato tinha alguma excludente, pois basta apenas a prática do fato.

As consequências da imputação de falta grave são nefastas, primeiro porque o faltoso passa por dois processos, um administrativos com sanções regulamentadas pelo art. 48 da LEP, e art. 64, inc. III do Estatuto Penitenciário do Paraná, são elas:

a) suspensão de visitas, de 20 a 30 dias;

b)suspensão de favores e de regalias 2 de 20 a 30 dias;

c) isolamento na própria

E outro em âmbito judicial são as consequências:

Art. 53, inc. III - suspensão ou restrição de direitos (artigo 41, parágrafo único);

IV - isolamento na própria cela, ou em local adequado, nos estabelecimentos que possuam alojamento coletivo, observado o disposto no artigo 88 desta Lei;

V - inclusão no regime disciplinar diferenciado.

Além de possibilidade de aplicação cumulativamente:

Art. 118 - A execução da pena privativa de liberdade ficará sujeita à forma regressiva, com a transferência para qualquer dos regimes mais rigorosos, quando o condenado:

I - praticar fato definido como crime doloso ou falta grave;

Art. 125. O benefício será automaticamente revogado quando o condenado desatender as condições impostas na autorização ou revelar baixo grau de aproveitamento do curso;1/3 (um terço) do tempo remido, observado o disposto no art. 57, recomeçando a contagem a partir da data da infração disciplinar. (BRASIL, 1984 s.p.)

No caso, o ideal seria, que a pessoa presa ao ser surpreendida com substâncias psicoativas dentro do cárcere, passasse pela instrução criminal, para inclusive constatar a presença de alguma inimputabilidade, pois a incapacidade psíquica para compreender a antijuridicidade, ou seja, em casos de inconsciência não há vontade, e, não há conduta e, consequentemente, não há crime. (ZAFFARONI, 2008, p. 367). Sendo que somente após a instrução, inclusive, com a elaboração de laudo para atestar dependência, se for o caso, poderá ser possível afirmar se de fato a pessoa cometeu, ou não, fato previsto como crime. E em caso de constatação de dependência química, possibilitar tratamento médico em vez de pena.

É preciso aplicar as práticas da medicina e terapêuticas, para tratamento dos dependentes químicos dentro dos estabelecimentos penais. Ressalta-se, sequer é necessário grandes movimentos, pois a lei prevendo tratamento médico já existe, bem como regulamentos sobre a forma de tratar a dependência. Basta apenas que as pessoas presas sejam vistas como seres humanos inerentes a doenças e dignas de tratamento de saúde. É inconcebível que iniciativas como os projetos Semear e OPUD fiquem adstritas às pessoas livres, pois são às pessoas encarceradas as que mais precisam. O que só se fortalece quando bradamos que a pena é um instrumento ressocializador.

Vale destacar, que poucas iniciativas para tratamento de dependentes químicos na prisão já foram realizados, e foi possível constatar os excelentes resultados, sendo o precursores nessa área o Dr. Drauzio Varela, que nos ensina:

Em 1989, comecei um trabalho voluntário em presídios, que dura até hoje. No Carandiru, naquela época, a moda era injetar cocaína na veia. Os presos vinham pele e osso, com os olhos ictéricos e os braços marcados pelas agulhas e os abscessos causados por elas.

Naquele ano, colhemos amostras de sangue dos 1.492 detentos registrados no programa de visitas íntimas: 17,3% dos homens eram HIV-positivos, e 60% estavam infectados pelo vírus da Hepatite C.

A partir desses dados, começamos um trabalho de prevenção que constava de palestras e vídeos educativos. Lembro que o diretor-geral tentou me convencer da inutilidade da iniciativa:

— O senhor está sendo ingênuo. Quem injeta cocaína na veia é irrecuperável, não tem mais nada a perder.

Estava errado, o resultado foi surpreendente: em 1992, a cocaína injetável foi varrida do mapa, fenômeno que se espalhou pelos outros presídios e pelos becos da periferia de São Paulo. A moda do baque na veia tinha chegado ao fim.(2018)

Talvez na ânsia em conseguir resolver a questão do uso problemático de SPA, procuramos soluções rápidas e fáceis. Entretanto, não existem soluções fáceis para problemas complexos. Nesse caso, é necessário olhar para as práticas que já deram certo no tratamento e prevenção de substâncias psicoativas, sejam elas lícitas ou ilícitas. Além de olhar para o futuro acolhendo sempre novos estudos, pesquisas e técnicas que podem nos auxiliar na questão.

Ademais, na atual conjectura da nossa legislação vários projetos de estudos esbarram na proibição de utilização de SPA, pois trata-se de substância ilícita independente da sua finalidade. E como se não fosse suficiente, também esbarram nos preceitos morais da população, que por falta de conhecimento, prejudicam campanhas, como aconteceu quando foram entregues cachimbos aos dependentes químicos. Segundo o coordenador da secretaria de DTS/Aids de 2016, Luiz Fernando Marques, era o objetivo do projeto: “Entrega-se o cachimbo quando a situação é extremamente grave. Em vez de usar a lata, que machuca e provoca sangramentos capazes de transmitir doenças, essa pessoa passa a utilizar o cachimbo artesanal, feito de coco", ou seja, por falta de conhecimento a sociedade acaba prejudicando ainda mais a situação do doente.

De acordo o Posicionamento Político do Conselho Federal de Psicologia Relativo à Política de Drogas:

Os tratamentos para o uso abusivo ou dependente de substâncias psicoativas devem ser qualificados, sistemáticos e baseados em evidências científicas, a exemplo daqueles desenvolvidos para outros problemas crônicos de saúde.(2018)

Diante do contexto atual, existe ainda um longo caminho até que essas substâncias psicoativas possam ser testadas e estudadas cientificamente. Apesar da presença massiva das substâncias em nosso país, ainda é considerada crime, mesmo sendo com objetivo de estudo.

Dessa forma, é perceptível que cada vez mais, o Direito deve ser tratado de forma multidisciplinar, justamente para que assuntos diversos sejam tratados por especialistas na área. Não se trata do jurista saber de todas as áreas, mas sim de atuar com uma rede de experts nas mais diversas áreas, seja ela social, terapêutica ou médica. O importante é tratar a situação de forma correta e não apresentar uma resposta superficial para um problema complexo como é a dependência química.

Por fim, um indício de que estaremos no caminho para solucionar uma das grandes questões das drogas, será quando passarmos a tratar doentes com tratamento médico especializado, e não com pena privativa de liberdade.

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